segunda-feira, 12 de maio de 2008

Comboio

Esqueci-me do Discman, pensou no exacto momento em que embarcou. O comboio começou a andar,como se só estivesse à sua espera. Na trepidação quase caía. Tirou a mala que trazia nas costas,cuspiu-a com as mãos para cima dos bancos e sentou-se de costas para o destino.Eram três da tarde, previu que por volta das cinco e meia chegaria à Gare de Santa Apolónia.Estava na última carruagem, e seria só para ele não fosse o casal de velhos sentados atrás.Afonso previu que fossem velhos pelo tom quente das suas vozes, porque nem sequer os viu.Vivia em constante alheamento do mundo, simplesmente porque nunca amara.A sua única realidade era a própria imaginação. Essa indiferença deixava-o de mau humor eazedo até com os amigos. Estes desprezaram-no e a namorada esqueceu-se dele nos braços de outro.Achou, então, que deveria tentar um novo começo. Lisboa, terra em que nunca estivera, pareceu-lheo sitio certo.O chiar de ferro a beijar-se chamou-lhe a atenção, olhou pela janela, viu que estavam parados numaterra a pouco mais de trinta minutos do local de partida. Entrou um homem com barba de três diase uma mulher com uma criança ao colo. Apesar dos lugares estarem quase todos vagos, entenderamque deveriam sentar-se junto de Afonso. O homem pediu-lhe, gentilmente, que tirasse a mochila esentou-se a seu lado. A mulher e a criança sentaram-se nos lugares de frente para ele.Foi o suficiente para o deixar irritado. Ainda para mais teve a certeza que o bebé adormecido,assim que acordasse, começaria a berrar.A viagem prosseguiu. Minutos depois, vinda de outra carruagem, apareceu outra inquilina.Acomodou-se nos bancos opostos, mas, de frente para Afonso. No segundo em que se sentouolhou para ele, que pressentindo-a virou o coração na direcção dos seus olhos.Esse olhar e o cheiro a jasmins, seria a última recordação no último momento da sua vida!Os minutos seguintes resumem-se ao esforço sobre-humano de não olharem um para o outro, porque,cada vez que o faziam, os olhares cruzavam-se envergonhados, como se esse sentido tivesse acapacidade de um outro, e falasse, e gritasse! Por várias vezes, em diferentes fracções de segundo,Afonso achou que deveria fazer por conhecê-la e por outras tantas vezes, nas mesmas fracções desegundo, não teve coragem. Assim ficaram naquele Inter-cidades, perdido por aldeias do litoral,durante pouco mais de uma hora. Até que o comboio voltou a chiar e a parar. A viagem chegara ao fim,mas não estavam em S. Apolónia, nem perto de Lisboa. A rapariga levantou-se, olhou uma última vezpara Afonso, sorriu-lhe e dirigiu-se para a saída. Ele permaneceu inerte, sem tomar a sua primeiradecisão corajosa, vendo-a já no lado de fora.Instantes depois, um comboio desgovernado, na mesma linha e na mesma direcção, embateu noque estava parado.E o bebé nunca mais chorou.

1 comentário:

Miguel Mocho disse...

E tue, hain! Ès um escritor canudo! Lol. bjs