domingo, 14 de dezembro de 2008

A lição

João estava a aprender da pior maneira o que a vida lhe podia ensinar. Uma lição dolorosa por ser final.
A morte deveria aparecer-nos de vez em quando e pregar-nos partidas e depois ir-se embora e dizer que tão depressa não voltava. Só a proximidade com a morte nos traz respeito pela vida.
A morte é o descanso que João não queria. Se ao menos fizesse um balanço positivo da vida que tinha tido, aceitaria melhor essa fatalidade. Sabia que fora ele que falhara, mas não aceitava de bom grado ser o responsável único, principalmente em situações que não controlava.
Ainda menino fora criado em casa da avó, sem amigos rapazes, o que fez com que perdesse os modos abrutalhados próprios dessas idades. As brincadeiras parvas, as brincadeiras com carrinhos, guerras com soldadinhos de borracha ou plástico, nada disso existiu na sua infância. O que existiu foi uma amiga. Dos 5 aos 7 anos João teve uma amiga inseparável, com a qual brincava, ria, chorava. Tornou-se atento, respeitador, amável. Teve com ela a primeira percepção do que era o sexo oposto, sem saber que estava a ter essa percepção. Teve com ela a primeira erecção sexual sem saber que estava a ter uma erecção sexual. Foi o seu primeiro grande amor sem saber que o era, dos 5 aos 7 anos, na idade das descobertas inocentes descobriu a mulher, descobriu o amor. E esse facto, de que ele não foi responsável directo, marcar-lhe-ia toda a vida. Separou-se dela quando ambos entraram para o ensino primário em escolas separadas. Foi a primeira perda, a primeira desilusão. Já na primária teve amizades maduras de mais para a idade. Teve namoradas que o queriam beijar na boca atrás do pavilhão, mas que ele recusava por ser respeitador. Namoradas e amizades que lhe duraram até à 4ª classe quando se voltou a separar. João só tinha 11 anos e estava a recomeçar uma vida diferente pela terceira vez, ele que se habituara ao conforto e à estabilidade de uma só amizade, de uma rapariga que o destino colocou a viver perto da casa da avó.
Preparatória. Novamente uma amizade com a força da primeira. A primeira paixão que teve com a real percepção de que estava apaixonado. Primeira nega. Chorou todo o dia com uma tristeza e desilusão que aos 11 anos de idade era no mínimo estranha.
Outro ano se passou, nova mudança de escola. Novos amigos. Desta vez amigos para a vida. João estava com 13 anos quando se apaixonou de novo. Enquanto os amigos preferiam jogar à bola e andar à porrada uns com os outros, ele queria estar junto de quem gostava, queria dizer-lhe o que sentia. Queria conversar, passear. E os amigos gritavam-lhe, “deixa-a estar, anda jogar à bola”, e ele não ia. Durou-lhe dois anos esse amor, sem ser correspondido.Quando chegou à idade de começar a frequentar bares e discotecas ía para passar um bom bocado com os amigos. E os mesmos que antes lhe diziam “deixa-a estar, anda jogar à bola”, diziam-lhe agora para se fazer às mulheres que por ali andavam, “tens de curtir a vida”.Mas ele não era assim. Ele foi o rapaz que entre os 5 e os 7 anos teve só uma amiga. E era isso que ele queria, ansiava pelo grande amor, ansiava de novo por uma grande amiga, brincar com ela, chorar com ela, rir com ela, acarinha-la e ser acarinhado. Mas esse grande amor teimava em não aparecer.
Assim passo a passo a vida foi-se desenhando. Até ao dia de hoje. Lá fora chovia e João vinha a pensar no quanto estava apaixonado. Talvez fosse esta a mulher da sua vida. E enquanto este pensamento lhe toldava todos os outros, passou por muitas mulheres que poderiam ser o seu grande amor, uma delas poderia ser a mulher da sua vida. Mas ele não via nenhuma porque só pensava numa. E agora que estava ali sentado em frente ao médico, deu-se conta que desde os 5 anos que tinha tido sempre um amor, uma mulher que o cegava e que não o deixava ver as outras. E que essa cegueira provavelmente o fez perder a vida. Tinha só vinte e três anos e o médico acabara de dizer-lhe que tinha cancro em fase avançada. Naquele momento João fez o balanço de toda a vida e o balanço foi evidentemente negativo. Só perante aquela crise fatal percebeu que o grande amor não é o que se procura, é o que se acha.
“ Se ao menos eu pudesse voltar atrás, encarava a vida de outra forma, lutaria de outra forma, lidaria de outra maneira com as pessoas, com as situações...”
Trimmmm. Era o despertador. Demorou alguns segundos a perceber que estava a ter um pesadelo. Levantou-se então, para a vida.

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